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obnubilado

Blog que ainda existe, apesar do tempo.

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A Casa de Quartos – Parte 6: Mencoviteo

Foi morar no quarto da frente, onde ficara a Cris, um novo morador, Marcelo. Ele era o outro baluarte da dignidade da casa, segundo D. Wilma. Começou a ser também confidente das desventuras diárias da velha senhora, sendo inclusive destinatário de um bilhete fatal, onde ela dizia que o casal Ênio e Leci era perigoso e estava pronto para “temperar a casa” – o que, conviemos eu e ele, deveria significar fazer macumba.

 

Certa madrugada, ouvi gritos. Dona Wilma gritava que tinham tentado entrar no quarto dela. Não dei bola. A porta do seu quarto ficava na frente da minha janela, há menos de 2 metros, e nada havia acontecido, com certeza.

 

No outro dia ela veio me contar que o Ênio estava espiando-a pelas frestas da porta e enfiou um cabide por baixo, tentando arrombar pra pegar suas roupas. Quando o Marcelo chegou, contou para ele também, sempre com seu hálito que movia multidões. Alimentou dias essa história. Depois dessa o casal ficou pouco tempo, saiu de lá sem pagar o aluguel e levando algumas panelas.

 

Marcelo passou a ser, então, o alvo de D. Wilma. Ela vinha me dizer que ele estava fazendo trabalhos para tirar a gente da casa e ficar sozinho lá. Um dia, recebi eu um bilhete fatal. Vinha confirmar o que ela havia dito dias antes, em sussurros empesteados: “descobri o sobrenome dele, é Ribeiro” (o que, aliás, não era verdade). Pedia, então, para eu tomar providências contra ele junto à minha vó (pois eu havia deixado escapar que minha avó era seguidora de umbanda) e comentava que a dona da casa, D. Ina, não acreditava nas suspeitas dela (“mas comigo não vem que não tem”, adverte). Tal bilhete trazia ainda a palavra definitiva, de certo já início de algum feitiço contra o rapaz marcado: “mencoviteo”, cujo significado nunca decifrei. Podem verificar a autenticidade de tal documento clicando na figura abaixo.

 

D. Wilma durou na casa quase tanto quanto eu, mas os supostos feitiços do Marcelo devem ter surtido efeito. Depois de um assalto à pensão (futuro assunto do capítulo sobre crimes no local), durante o qual ela disse ter sofrido um empurrão, mudou-se para o apartamento da “Hilma, minha filha” enquanto eu estava viajando.

 

Pude, então, entrar em seu quarto. Era um lugar horroroso, sem dúvida, e pensar que ela ficava lá 80% das horas de seu dia, sozinha, com uma panela de feijão em baixo da cama (pois ela guardava comida sob o colchão, para ninguém roubar), é, com certeza, bastante triste.

A Casa de Quartos - Parte 5: Paranóica senhora

A chegada de Dona Wilma na pensão foi um marco. Tinha 70 anos e pensava que todos estavam contra ela – menos eu.

Chegou lá sendo amiga da dona da casa e foi instalada no quarto lá do fundo do corredor da cozinha, de onde saía pouquíssimo. Um quarto pequeno, de madeira, com uma janela para o exótico pedaço de morro atrás da casa. Alguns dias depois de sua chegada, implicou com três hóspedes cariocas, dizendo que eles haviam roubado seu tomate que estava na geladeira.

Aliás, colocávamos coisas na geladeira comunitária. Eu não costumava colocar etiquetas em nada, mas ela colocava. Em sua etiqueta estava sempre escrito “Vó Wilma”.

Os cariocas e ela discutiram a tarde toda, especialmente nas horas em que ela saía do quarto para ir ao banheiro e passava pela sala dizendo “esses ladrões roubam a comida da gente! Eu sou uma senhora doente e pegaram meu tomate!” e eles revidavam, e todos ficavam irritados.

Ela e o casal citado no texto anterior se davam muito bem. Eles dois – Ênio e Leci - eram pessoas quietas, não intrometidas, que gostavam de fumar na rua enquanto falavam de coisas que não me diziam respeito. A mulher cozinhava algo e dava para eu provar, às vezes, e enquanto eu colocava na boca ficava em volta perguntando, “Ta ótimo, né? Ficou bom, né? Gostoso, né?” e eu tinha que concordar.

Os três – o casal e D. Wilma – começaram a dividir despesas de comida. A mulher cozinhava – “que gosto bom, né?” – e D. Wilma pagava uma parte. Eles conversavam, riam e viam TV juntos. Até que a alegria acabou. Por algum motivo, um dia discutiram, e a partir de então eu era a Suíça da casa, o único neutro, pois só havia, naqueles dias, nós quatro. 

Eu chegava na pensão e o casal vinha me contar que a velha tinha feito isso e isso, e falado aquilo e aquilo. Eles iam se deitar, e, minutos depois, D. Wilma saía do seu quarto e vinha bater na porta do meu, com olhos esbugalhados de pássaro perseguido. Em segredo. Falava baixinho, bem perto, coisas sobre o casal. Eles destratavam-na, eles xingavam-na, falavam mal da filha dela, falavam mal das donas da casa, faziam feitiço, eram capetas disfarçados, enfim.

Falava sem parar, rapidíssimo, abafadamente, e com uma peculiaridade: um mau hálito hediondo. Era como se a oitava peste divina baixasse sobre mim. Ela não escovava os dentes desde o velório de Getúlio Vargas. Eu dava uns passos para trás, fugindo, mas ela me seguia, e falava, falava, e falava...

A Casa de Quartos – Parte 4: Gisele Bündchen do Morro Santana

Certo dia acordei e na sala da pensão estava, vendo televisão, uma figura enigmática, vestida com uma camisa preta e maquiada pesadamente. Tinha uns 25 anos, era morena, estilo mulher com muito hormônio masculino. Um novo casal que morava lá apresentou-a como sendo a Cris. Eu não tinha muito o que fazer e me sentei na sala um pouco e a Cris começou a puxar assunto. Contou sua história de vida. Mentiras cabeludas. Principalmente levando-se em conta que ela era um travesti.

 

Disse que havia uns anos tinha começado sua carreira de modelo, muito bem sucedida. Participou de um grande concurso para a revelação de novos talentos da moda e eis que – pasmem! – ficou em segundo lugar, perdendo apenas para Gisele Bündchen. A partir de então começou a trabalhar muito, fez alguns desfiles em Milão, mas estava querendo mesmo era desenhar roupas. Então ficou morando uns tempos na Europa fazendo cursos com estilistas na França e na Holanda, e agora que estava de volta a Porto Alegre resolveu se inscrever - vejam só! – num curso do Senac e foi morar ali naquela casa decadente, enquanto trabalhava de promoter. Fingi que achei tudo lindo.

 

No dia seguinte o assunto na casa era o fio dental que ela usava para dormir, muito visível pela janela de vidro do seu quarto. Dois dias depois, ela desapareceu de lá, sem nem me dar tchauzinho.

 

Para ilustrar tudo, eis aí uma foto da casa, do de lado de cá do muro (havia um muro de três metros e mais alguns degrauzinhos do outro lado).

A janela ali é a do quarto onde ficou Cris.

A Casa de Quartos - Parte 3: Flores de plástico

Havia um quarto feito com uma parede de madeira que dividia a sala. Era pequeno e sua janela dava para a cozinha. Lá foi morar Eva. Era artesã. Fazia flores de material reciclado, especialmente garrafas PET. Muito bonitas. Não eram essas flores escrotas que comumente vemos, que nos dizem a toda hora: “olhe, somos uma garrafa de guaraná cortada em pétalas”. Não. Eram muito bem feitas, de vários tamanhos, tipos e espécies.

 

Eva tinha mais de 60 anos, era catarinense e ficava grande parte da semana trabalhando na sala, ocupando os sofás com todo o tipo de material e flores coloridas. Aos sábados, saía de manhã para montar uma barraca na feira de artesanato no Parque da Redenção. Comumente vendia pouco, ou nada. As flores eram caras. E ela odiava as pessoas que diziam que o trabalho dela era ótimo, perguntavam o preço, achavam caro e não compravam. Xingava-as constantemente.

 

Nós conversávamos bastante. Ela era inteligente e a pessoa mais normal que me aparecera por lá. O problema é que não conseguia parar de falar. Quando engatava uma conversa ficava horas tagarelando. Às vezes eu estava disposto a escutar e compartilhar algumas opiniões, embora imaginasse que se ela tivesse um ataque de tosse fulminante ainda daria tempo de ver a novela. Outros dias eu não estava a fim, e então tinha que fugir.

 

Certa vez, eu disse que não podia conversar, pois precisava tomar banho e estudar. Mas ela não deu muita bola e engatou considerações sobre as civilizações africanas e o mundo pré-colombiano (grandes diversidades de assunto ela tinha). Eu fui fugindo, mas ela me perseguia pela casa falando incessantemente, desde a cozinha até meu quarto. Tive que pegar a toalha e o sabonete e me trancar no banheiro na cara dela.

 

Infelizmente, ela se mudou de repente, antes que eu pudesse comprar uma flor. Nunca mais a vi. Mas após sair da casa, ela deixou uma espécie de móbile na cozinha, feito com fundos de garrafa derretidos e coloridos. Peguei-o e dei para a minha mãe, como pode comprovar o retrato ao lado. Existe até hoje.

A Casa de Quartos - Parte 2: Hit me again

Me mudei para a casa dia 12 de agosto de 2000. Fui colocado no quarto maior, o único quarto bom vago. Tal cômodo era para abrigar duas pessoas e eu tinha que rezar para que ninguém a mais chegasse, senão teria que dormir acompanhado por um estranho (isso acabou acontecendo um mês depois, e o estranho era meu colega de faculdade, mas no dia seguinte foi tirado de lá - dizem - pelo pastor da igreja que ele freqüentava).

 

Na casa, a essas alturas, já moravam outras cinco pessoas: uma moça simpática demais, daquelas que te pedem emprestado shampoo e 2 reais logo depois de te conhecer (Adriane, a veterana do local), e dois funcionários do Campus do Vale da UFRGS (que fica no lado oposto do morro): Cláudio, com seus 30 anos, bem educado, cabelos longos presos num rabo-de-cavalo apenas solto quando chegava em casa, e um senhor de cabelos brancos, alto e forte, alegre, Seu Renato,  que trazia chocolate ou chiclete, às vezes, para nós. No quarto no fim do corredor moravam ainda, há menos de uma semana, um casal, que só chegava à noite e adorava fazer comida com muito alho, deixando um cheiro ensurdecedor na cozinha.

 

Tudo parecia ir bem. Almoçamos até todos juntos num domingo em que as donas da casa foram limpar o jardim. Elas eram anti-petistas e eu ficava muito bravo com as coisas que falavam sobre a prefeitura, mas tudo bem, “eram boas pessoas” eu me equivocava pensando.

 

Então, coisas aconteceram: cortaram a nossa água. Simplesmente, um dia à tarde não tínhamos água e soubemos que a dona não havia pago. Telefonema pra cá, telefonema pra lá, no dia seguinte pagaram. Mas então cortaram a luz. Discussões rolaram. A menina veterana xingou todo mundo, aos gritos, no telefone. Novamente, pagaram no dia seguinte. Isso viria a acontecer diversas vezes ao longo do tempo: as donas da casa não pagavam as contas e nós ficávamos sem água e/ou luz. Um espanto. E, claro, elas sempre eram as vítimas. Elas pagavam em dia, mas a prefeitura petista mandava cortar...

 

A Casa de Quartos - Parte 1: Descoberta

Pois estava a pensar sobre algo decente para escrever, lembrei-me de meus tempos de pensão e quis escrever sobre isso, especialmente para que eu não perca essas lembranças e que, assim, colocando-as neste papel virtual, eu possa também liberar o espaço que ocupam em meu cérebro para outras coisas.

 

Era 2000 e eu deveria me mudar para Porto Alegre a fim de estudar na UFRGS. O que faria eu, sem parentes ou amigos aqui e sem dinheiro para alugar apartamento? Morar em pensão, claro.

 

Vim de carro com minha mãe e meu padrasto e percorremos algumas ruas aqui do centro atrás dos lugares com anúncios no jornal. Cada coisa pior do que a outra, um horror. Tinha de tudo: 3 beliches num quarto abrigando trabalhadores de indústrias e migrantes nordestinos, onde eu teria a chave do meu armário para guardar o que eu quisesse (pelo tamanho, no máximo caberiam 2 latas de atum e um sabonete); um quarto que eu dividiria com um rapaz "muito bom e trabalhador", que só chegava à noite - o que não era de todo mal -, mas na sala havia pessoas tão estranhas (um velho semi-hebefrênico e um guri capeta e feio) que saímos de lá correndo, apesar de a dona do lugar aparentar ser boa gente; um apartamento bonito, na Alberto Bins, onde eu viveria com outros 5 ou 6 estudantes, sempre sendo fiscalizado pela dona do local, que morava em frente e dizia ser muito atenciosa para com todos (imaginei que ela tirava casquinhas sexuais da rapaziada). E eu, apavoradíssimo com tudo, pois nunca em minha vida tinha estado no centro de uma cidade com (bem) mais que 300 mil habitantes.

 

Então telefonamos para um número de outro anúncio e atendeu aquela que eu viria a conhecer como Dona Ina. Fomos no apartamento dela, ali na Protásio. Ela explicou que alugava quartos numa casa muito boa, onde só se hospedavam pessoas de nível, "até um padre" morara lá, mostrou umas fotos, falou coisas engraçadinhas... Pela problemática dos lugares que havíamos visitado, achamos prudente ir conhecer. Só que não era perto. Ou melhor, era quase no fim da cidade. Lá no Morro Santana, mais próximo de Viamão do que de Porto Alegre.